Introdução
O Brasil não possui testes padronizados para avaliar a alfabetização. Isso se aplica tanto às etapas mais
básicas quanto mais avançadas da aquisição da leitura e escrita. Diversas
Secretarias Municipais de Educação utilizam testes para avaliar competências de
alfabetização em suas redes de ensino. O autor tem conhecimento de dezenas
desses tipos de testes, normalmente produzidos de forma artesanal pelas equipes
das Secretarias ou das IES locais. Nenhum desses testes respeita os princípios
psicométricos mais elementares, portanto geram pouco conhecimento útil ou
generalizável.
A elaboração de um teste adequado depende da definição de alfabetização.
Diferentes definições levam a diferentes indicadores, diferentes matrizes e,
consequentemente, diferentes itens. O primeiro problema a ser abordado,
portanto, é o da definição do que seja alfabetizar.
O que é alfabetizar
As definições de alfabetização mais correntes no Brasil diferem do que
se encontra nos periódicos científicos de maior circulação internacional. A
referência usual no Brasil são os PCNs - Parâmetros e Referenciais
Curriculares Nacionais. Na verdade, os PCN evitam definir alfabetização mas
quando o tentam fazer, confundem leitura com compreensão, escrita com produção
de textos. Em conseqüência, os testes baseados nessa conceção refletem esse
erro conceitual e conseqüentemente não medem nem leitura nem compreensão.
Trata-se de um problema elementar de lógica: um aluno que não sabe ler pode não
responder a uma pergunta de compreensão porque não sabe ler, e não porque não a
compreenda. Da mesma forma, um aluno pode não produzir um texto simplesmente
porque não consegue escrever as palavras de forma legível ou ortográfica, e não
porque não possua as competências intelectuais para produzir um texto. Avaliar
compreensão e produção de texto sem saber se o aluno domina as competências que
lhes precedem resulta em testes que nem medem se o aluno está alfabetizado nem
se é capaz de compreender ou produzir textos. Obviamente essa afirmação decorre
da definição de alfabetização corrente na literatura científica – e não da
definição de alfabetização baseada nos ambíguos conceitos de alfabetização
apresentados nos PCNs.
Se tomarmos como base de referências publicações como por exemplo o
National Reading Panel Report (NATIONAL READING PANEL, 2000), o National
Literacy Strategy (OFFICE FOR STANDARDS IN EDUCATION, 2000) ou o Apprendre à
Lire (FRANCE, 1998), que são formalmente equivalentes aos PCNs, ou se tomarmos
como referência os autores e as publicações mais citadas na literatura
cientifica internacional como Adams (1990), Oakhill e Beard (1999), ou
McGuiness (2004), podemos observar um elevado nível de consenso entre os
cientistas e formuladores de políticas educacionais dos outros países a
respeito do assunto. Ler significa, basicamente, a capacidade de identificar
automaticamente as palavras. Escrever consiste em transcrever os sons da fala.
Ambos envolvem a capacidade de decodificar fonemas em grafemas e vice-versa.
Dado que o objetivo de ler é compreender, e o objetivo de escrever é comunicar,
aprender a ler e escrever envolvem três níveis de competência:
Ensinar essas competências em níveis progressivamente mais elaborados
constitui o cerne do programa de ensino e do "processo" de
alfabetização de praticamente todos os países do mundo que possuem um sistema
alfabético de escrita. O processo de alfabetização, como definido ao final do
parágrafo anterior, não se confunde com letramento, educação permanente ou
outros objetivos meritórios da educação: ele tem princípio, meio e fim, e seu fim
ocorre quando o aluno adquire o nível de fluência necessário para ter um mínimo
de autonomia na leitura e escrita.
As competências relacionadas com os "objetivos" da
aprendizagem da leitura, a compreensão e produção de textos são de natureza
muito mais complexa. O ensino dessas competências antecede, acompanha e sucede
o processo de alfabetização, mas é independente delas. As pessoas compreendem
antes de saber ler e são capazes de contar histórias, fazer descrições ou
relatar notícias antes de saber escrever. Tanto do ponto de vista conceitual
quanto metodológico são independentes do processo da alfabetização. Embora
sejam ensinadas durante a alfabetização (e em pré-escolas, onde existem), elas
não se constituem no objeto próprio da alfabetização, e sim, no seu objetivo de
longo prazo. A confusão entre o objetivo e o processo de alfabetização precisa
ser superada para que o conceito possa emergir de forma clara e sem
ambigüidades. Definida a natureza da alfabetização, cabe especificar as
competências que permitem ao aluno tornar-se alfabetizado.
As competências da alfabetização
Os avanços da Psicologia Cognitiva da Leitura vêm permitindo um
mapeamento bastante detalhado das competências que precedem, acompanham e se
tornam possíveis com a alfabetização. Não cabe discutir aqui a forma, momento
ou método de ensino dessas competências, trata-se apenas de descrevê-las. Uma
apresentação sistemática dessas competências encontra-se no já mencionado
National Reading Panel Report4:
A- Competências que viabilizam – e portanto antecedem a alfabetização:
- a capacidade de lidar com livros e textos impressos;
- a consciência fonológica, isto é a capacidade de discriminar sons;
- a familiaridade com a metalinguagem da aprendizagem e da escola,
incluindo capacidades relativas ao entendimento de comandos e instruções usuais
no ambiente escolar.
B- Competências centrais ao processo de alfabetização:
B. 1. Na leitura
- a consciência fonológica - a ideia de que diferentes letras produzem
diferentes sons;
- o princípio alfabético - a ideia de que há uma relação entre a
presença e posição de um grafema e o som que ela tem na palavra;
- a decodificação – a capacidade de pronunciar o som de uma palavra
escrita ou transformar em escrita uma palavra ouvida;
- a fluência – que inclui a correção e ritmo de leitura de textos.
B. 2. Na escrita
- capacidade de escrever de forma legível e com fluência (caligrafia);
- capacidade de escrever de forma ortográfica;
- capacidade de escrever frases sintática e semanticamente corretas.
C- Competências que precedem, acompanham e sucedem o processo de
alfabetização – mas são independentes do mesmo:
- desenvolvimento do léxico – quanto maior o léxico, maior a capacidade
de leitura e de compreensão;
-desenvolvimento de competências de compreensão de texto, e que incluem
competências sobre a estrutura e estrutura, estrutura, lógica e usos sociais
dos diferentes tipos de texto, bem como estratégias gerais de compreensão e
produção de textos.
Esta lista de competências constitui o currículo dos programas de
alfabetização da maioria dos paises do mundo que adotam o sistema alfabético. A
maior parte do tempo de aprendizagem se concentra na aquisição das competências
centrais de decodificação e fluência – pois são elas que asseguram o
reconhecimento automático das palavras. Elas são ensinadas num período que vai
de 1 a 3 anos, dependendo do grau de transparência ou opacidade da língua5. Esse mero fato demonstra que o processo
de alfabetizar é independente do processo de compreensão. E, naturalmente, são
essas as competências que constituem a matriz de referência para o
desenvolvimento de instrumentos de avaliação.
Instrumentos de avaliação
Definida a alfabetização e as competências que a possibilitam, cabe
identificar os instrumentos mais adequados para avaliar se o aluno está
alfabetizado.
Nas escolas tradicionais a avaliação se dá quando o diretor "toma a
leitura" dos alunos para verificar se estão alfabetizados. O ditado
continua sendo um instrumento prático eficaz para verificar a capacidade de
transcrição escrita do código alfabético. Professores da série seguinte à
alfabetização são os melhores juízes para avaliar se o aluno está ou não
alfabetizado: o aluno que não lê o texto do livro, não copia o que precisa
copiar no tempo adequado e se não toma notas de forma defina, não tem
funcionalidade. Portanto, é um analfabeto funcional escolarizado. Embora não
sejam tecnicamente robustas, essas práticas contém os elementos essenciais de
uma boa avaliação das competências centrais da avaliação.
Para avaliar a fluência de leitura6, instrumentos mais robustos e
sofisticados devem incluir:
- um texto que o aluno não
tenha lido, de estrutura morfo-sintática compatível com a idade e nível de
desenvolvimento do aluno;
- uma leitura cronometrada;
- contagem de erros (gaguejar,
parar, silabar, decodificar).
Para avaliar a capacidade de escrita o ditado é um instrumento que
apresenta um elevado grau de validade de face, e normalmente é avaliado levando
em conta:
- a fluência, ou seja, o tempo
necessário para escrever;
- a legibilidade;
- o nível de correção
ortográfica;
- o atendimento a regras
básicas de pontuação e uso de maiúsculas;
- a disposição da escrita no
papel de acordo com a natureza da mensagem.
Um aluno pode ser considerado alfabetizado quando domina essas
competências. Nas séries seguintes a ênfase do ensino da língua passa para
outros aspectos, tais como o desenvolvimento do léxico, a correção ortográfica,
o domínio da sintaxe e a compreensão e produção de textos. Nada impede que
essas habilidades sejam ensinadas e avaliadas antes e durante o processo de
alfabetização. No entanto são necessários cuidados especiais para que essas
competências sejam avaliadas de forma independente da avaliação das
competências específicas da alfabetização.
Compreensão e produção de textos
Os indicadores descritos na seção anterior referem-se às competências
centrais e básicas do processo da alfabetização. O aluno, mesmo depois de ser
considerado alfabetizado, ainda precisa e pode desenvolver fluência de leitura
e escrita. Também precisará desenvolver sua capacidade ortográfica – que são
competências próprias da alfabetização. Mas já alcançou um nível básico que lhe
permite funcionar numa segunda série, ou seja, usar a leitura e escrita para
aprender – ao invés de aprender a ler e escrever. O processo da alfabetização,
como tal tem princípio, meio e fim: não é um processo permanente. E portanto
pode ser avaliado de forma precisa.
Já a compreensão e a capacidade de produção de texto são competências
que nem começam nem terminam na escola. Antes da escola e ao longo da vida
aumentamos nossa capacidade de compreender e escrever em função do
desenvolvimento de nossa capacidade mental e dos conhecimentos que adquirimos
sobre os vários assuntos sobre os quais lemos ou escrevemos.
A criança compreende textos bastante complexos antes de ser
alfabetizada, e também é capaz de produzir textos orais. Mas a mesma criança
recém-alfabetizada carece de competências que lhe permitam compreender esses
mesmos textos se ela própria tiver de lê-los. A razão é que ela não possui a
fluência adequada: ela tem uma dificuldade de leitura que, por sua vez, impede
a compreensão. Mas isso não significa que essa criança tenha uma dificuldade de
compreensão. Daí a necessidade de cuidados e técnicas próprias que permitam
avaliar a capacidade de leitura e escrita de forma independente da mensuração
das capacidades de compreensão e produção de textos, no caso de alunos
recém-alfabetizados. De outra forma a medida fica contaminada, e ficamos sem
saber se o aluno não compreendeu porque não sabe ler ou porque apenas não soube
compreender. Os testes mencionados no primeiro parágrafo deste artigo cometem
essa confusão.
O mesmo ocorre na escrita. O aluno pode ser capaz de pensar e ditar um
texto razoavelmente estruturado e elaborado. Mas se não souber escrever com
legibilidade e fluência, pode nao "produzir um texto" – muito menos
dentro de um tempo funcionalmente adequado. Portanto, se o avaliador não se
assegurar, de forma independente, que o aluno possui competências de caligrafia
e ortografia, nao tem como avaliar se o aluno deixou de produzir um texto
porque nao possui as competências de produção de texto - embora saiba escrever
no sentido próprio da palavra – ou porque não possui as competências básicas da
escrita. Nesse caso o teste foi inútil, pois não avaliou nem uma coisa nem
outra.
A esse respeito são eloqüentes os resultados do SAEB e do PISA. No caso
do PISA (ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT, 2001), vemos
que mais de 55% dos alunos brasileiros com 13 anos de idade, matriculados na
7ª. e 8ª. séries do ensino fundamental situam-se no nível mais básico de
leitura, que é o nível da identificação das palavras. Ou seja, no máximo eles
identificam as palavras escritas, sem necessariamente apreciar o sentido. É
provável que se fossem submetidos a um teste oral, esses alunos tivessem um
resultado muito melhor em compreensão. Eles não compreendem porque não sabem
ler – não porque não sabem compreender. Diante de um texto, ou de um teste, seu
esforço cognitivo concentra-se no nível mais elementar – porque não foram
devidamente alfabetizados, e não aprenderam a identificar automaticamente
palavras nem a ler com fluência.
Cabe deixar claro que um aluno devidamente alfabetizado, ainda que com
fluência limitada de leitura e escrita, deve ser capaz de compreender textos
simples e compatíveis com seu nível de leitura. Bem como deve ser capaz de
redigir frases com uma estrutura sintática simples. Esta não é a questão em pauta.
A questão é que quando a criança não adquiriu a base, usar testes com textos
complexos e exigir produção de textos também complexos não permite saber nem se
a criança está alfabetizada nem se consegue compreender ou produzir textos.
Voltando ao ponto de partida
A qualidade de um teste depende, entre outros fatores, da consistência
entre a definição, os indicadores, os instrumentos e os itens utilizados – e
sua pertinência à clientela avaliada. As concepções equivocadas de
alfabetização prevalentes no Brasil impossibilitam não apenas a alfabetização
adequada das crianças, mas a elaboração de testes adequados de alfabetização.
A proposta de Matriz e Referência do SAEB7 para os concluintes da 2ª. série do
ensino fundamental, que vem circulando pela Internet a partir de meados de 2004
incorre nesse mesmo tipo de erro. Nessa proposta há apenas uma competência
relacionada com o funcionamento do sistema de escrita: dominar o princípio
alfabético. Essa competência, na Matriz do SAEB, é desdobrada em 4 descritores:
identificar as relações entre fonemas e grafemas; identificar palavra composta
por sílabas canônicas, identificar palavras compostas por sílabas não
canônicas; relacionar palavra à figura.
Cabe registrar que essa competência é considerada como fundamento ou
requisito para a alfabetização, e não como parte do que deve ser ensinado como
próprio de um programa de alfabetização. Seria mais adequado investigar esse
tipo de competência para diagnóstico de alunos que vão iniciar a alfabetização
do que para um teste de alfabetização propriamente dito. Todos os outros
indicadores da referida Matriz referem-se a competências relacionadas à
compreensão de textos.
Ao ignorar os avanços da Ciência Cognitiva da Leitura e apoiar-se nos
PCNs como fonte de definição do que seja alfabetização, os responsáveis pela
elaboração dos testes de alfabetização deixarão as escolas e pais sem saber se
os alunos foram ou não alfabetizados. Pouco saberemos sobre as competências de
compreensão – como podemos inferir da história do SAEB e do PISA – e nada
saberemos sobre o êxito da alfabetização.
Referências
ADAMS, M. J. Beginning to read:
thinking and learning about print. Cambridge, MA: MIT Press,
1990. [ Links ]
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Alfabetização infantil:
os novos caminhos: relatório apresentado à Comissão de Educação e Cultura da
Câmara dos Deputados. Brasília, DF, 2003. [ Links ]
FRANCE. Ministère de la Jeunesse, de l'Éducation Nationale et de la
Recherche. Apprende à lire. Paris: MEN,
1998. [ Links ]
McGUINESS, D. Early reading instruction:
what science really tells us about how to teach reading. Cambridge, MA: MIT
Press, 2004. [ Links ]
NATIONAL READING PANEL. National Reading
Panel Report: teaching children to read: an evidence based assessment of
the scientific research literature on reading and its implications for reading
instruction. Washington, DC: National Institute of Child Health and
Development, 2000. [ Links ]
OAKHILL, J.; BEARD, R. Reading development
and the teaching of reading. Oxford: Blackwell Publ.,
1999. [ Links ]
OFFICE FOR STANDARDS IN EDUCATION. The
national literacy strategy. London: Ofsted,
2000. [ Links ]
OLIVEIRA, J. B. ABC do alfabetizador. 3. ed. Belo Horizonte:
Alfa Educativa, 2005. [ Links ]
ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND
DEVELOPMENT. Knowledge and skills for life: first results from the
PISA 2000. Paris: OECD,
2001. [ Links ]
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